terça-feira, 27 de abril de 2010

Oníricos - Helena Schopenhauer Borges



1.
Preparei o leitoDeito-me pronta para a operação O nó está pronto para sairMaduro, quase dá frutosa raiz é curtacomo a mandrágoraum monstro vegetal que espera ser paridoe virar as costas para tudo o que se foi.
A seiva verde cairá pelo chãoÁcida com seu gosto simples de limãoMinhas mãos prontas Não terão força de segurar a criança.
A criança é de uma amiga que vinha me visitar quando era meninaAgora estamos as duas presas nesta casa de loucosEla que é louca e eu que sou só uma pobre ressuscitada esperando que Deus se apiede do meu cansaçoMas Deus, tem dias que é ruim, como um diabo e nem olha que eu existaPros loucos ele nunca olhouA mimDevia olhar porque tenho a minha flor desabrochando no peito e se a operação não der certoEu morro.E Deus precisa ver o rosto de quem entra no céu.


2.
Preparei o leitoOnde vou me deitar esperando os médicosO bisturi sujo de outros sanguesSei que abrirão o meu peito Sem precisar cortar o ossoVirá o animal-vegetal que mora escondidoE que dói no fundoNão o fundo do estômago, nem o coração, pulmões, Esses órgãos exilados do restoO que dói é o fundoO que não se pode tocar


3.
Preparei o leitoArrastei a cadeira pra pertoAs pessoas da família sempre fogem nestas horasÉ que mortos tem pouca resistência para a dorEu não,Porque eu sou a ressuscitadaE mantenho a calma nas horas tristes e alegresOntem me visitou o Gabriel com sua espada e um grupo de companheiros com tochas acessas para iluminar o caminhoPerguntei-lhe se estava cansadoEle me disse que não trazia respostas, mas uma pergunta únicaEu disse que não tinha mais ouvidosEle me avisou que estava tudo perto Mas que eu precisava responder a perguntaEu avisei Não tenho ouvidos, meu arcanjo,Ele retrucou que era preciso ouvirEu mostrei-lhe o lugar das orelhas que estava vazioEle me pediu que baixasse a cabeça os homens puderam as labaredas nas minhas têmporas e eu sai escutando.A operação começará cedo.

4.
O carbúnculo é grande e verde, todo verde, vermelho e amarelado como uma romã apodrecendo.Mostro a Gabriel ele me diz que a cor é boa.


5.
Chega o médico vestido de preto.Eu me assustoMeu coração disparaNunca vi quem não se vestisse de branco.Ele me avisa por trás dos óculos que não devo ter medo, Nem toda operação tem a mesma cor.Me aplica uma injeção e eu sinto um pó corroer minha língua.Os outros ao redor consentem como se julgassem.Eu durmo, mas ouço tudo, assim como o movimento de extração.Nasce de mim uma menina gordinha, em suas costas está colado o carbúnculoOs médicos levam-na embora envolta em uma toalha branca.Não vi o seu rosto.



6.
Deixam a outra que é puro carbúnculo, o carbúnculo verde, meio carne, meio vegetal dentro da pia. Uma moça que não estava ali vem dizer-me que devo regá-lo duas vezes por dia. As flores serão coloridasSerá mau se a cor for branca, bom se forem negrasEla abre a janela e salta.Um pássaro passa longe e pia estranhamente.


7.
A velha francesa e gorda vem me trazer a roupa de princesaPensa que falo sua línguaTranca-me no quarto vazioDescobre que sou de mentiraDá-me uma roupa de velhaA roupa é largaA cor de pele rosadaPelas janelas abertas vejo pessoas nuas passandoEu estou nua, mas vestida pela casa.Do lado de fora, um homem gordo com um sexo de elefante contempla a paisagemEu sei que os nus virão e eu estarei nua para sempre.

8.
Os homens correm atrás de mimEu despenco por todos os lados do casteloNo caminho da queda há um homem tocando seu violãoFuma o moço, e é bonitoEu me viro para as fotos e caio no fundoO abismo acabará um dia?Explico à minha mãe que eu precisava me jogar.

9.
Quando acordoVejo o céu quadradoAs portas avançam até onde estouEu que sei que portas não se movemÉ só ver o que não existeVomito todos os diasO vômito da noite é mais seco que o que vem pela manhãMeus dentes são amarelos de tanto ácidoAs portas não param de avançar por issoEu corroPara chorar longe a morte do meu filho de dezesseis anos que eu não conheciPor que tinham que matar o garoto?Nem lhe deram chance de se defenderEu e todos os meus assassinosOs que guardam o segredo porque são túmulosOs que contam os segredos porque tem pena de si mesmosEssa gente ainda vai acabar comigoOs que vêm com as palavras adocicadas cheias de formigasE falam, falam sem parar.As portas não param de se moverEu grito como as sereias surdasMeu pai acorda-me todas as manhãs em que me lembro deleJá não é capaz de virar a ampulheta do seu quarto escuroEu aperto as mãos procurando calorÉ frio no pampa Não há água que nos refaça a vida no corpoSó o frio há de nos calar

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